terça-feira, 29 de junho de 2010

Juiz Conselheiro Salreta Pereira aposta no futuro da Mediação


José Amilcar Salreta Pereira nasceu em 1949, em Braga, e é licenciado em Direito.
Foi Delegado do Procurador da República nas Comarcas de Elvas, Ponte da Barca, Fafe, Porto e Santo Tirso, Juiz de Direito nas Comarcas de S. João da Pesqueira, Tabuaço, Chaves, Esposende e Braga,  Juiz—Desembargador no Tribunal da Relação do Porto e, em comissão de serviço, Inspector Judicial.
Também foi Director-Delegado Regional do Centro
de Estudos Judiciários.
Foi nomeado para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) a 13 de Novembro de 2003.
É actualmente Juiz-Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
Em entrevista ao CAFAP, Salreta Pereira confessa ser um adepto da Mediação.      


Ao longo da sua carreira teve com certeza contacto com muitos processos de Direito da Família. Considera que tem havido uma evolução positiva no tratamento das questões da família e sobretudo das crianças?

A minha experiência diz-me que, em relação aos problemas das famílias e sobretudo das crianças, as grandes quezílias que se geram à volta da dinâmica familiar resultam do facto de os pais transferirem para os filhos todos os problemas que tiveram durante o casamento e no divórcio ou separação. Portanto, cada um dos pais tende a fazer aquilo que o outro não quer que ele faça. A maior parte dos pais não está preocupada minimamente em ficar com os filhos porque os ama ou porque tem melhores condições para os tratar, educar e dar uma determinada formação, para os vigiar mais de perto…não se preocupam muito com isso. Eles preocupam-se sim em ficar com os filhos porque o outro também quer, para contrariar o outro. Põem os seus problemas pessoais, os seus desencontros e as suas mágoas acima do interesse dos filhos.
Eu, enquanto juiz de 1ª instância, passava horas a sensibilizar os pais para que, independentemente dos problemas que tivessem e mesmo que o casamento tivesse sido um fracasso, pensassem que há uma coisa que vão ter sempre em comum, que são os filhos

Muitos pais cumpriam com os seus deveres apenas quando eram obrigados…

Sim, sem dúvida. Eu passava muitas horas com os pais e quando percebia que algum deles não estava a colaborar, era duro. Se eu percebesse que o seu interesse não era o bem dos filhos, eu convencia-me que aquela pessoa não era a indicada para tomar conta dos filhos. Há pessoas que mostram no Tribunal que são mal formadas e que não se preocupam com o bem-estar dos filhos, querendo muitas vezes satisfazer o seu ego ou vingar-se do seu ex parceiro. Tive as maiores decepções em relação aos menores. Tive pais que diziam que ameaçavam desempregar-se para não pagarem a pensão de alimentos. Eu era implacável nesse tipo de situações mesmo que tivesse de condenar com prisão efectiva.
Não há crime pior do que este. É pensado. Há crimes que resultam de loucuras momentâneas que até podem ser compreendidos mas quando se desprezam os filhos, isso revela uma má formação. Quando os via a não cumprir e podendo cumprir, ficava revoltado.

Considera que as alterações na Lei do Divórcio são positivas?

Acho que sim. Se as pessoas não querem estar juntas, não estão. Não sei se é mais justa ou não. O tempo o dirá. Penso que as pessoas, sabendo que é fácil divorciar-se, vão criar estruturas mais sólidas para preservar o casamento. Basta um dizer que não quer mais. Toda a relação que é artificial não faz sentido. Claro que esta lei gerou controvérsia nos sectores mais conservadores como a Igreja. No entanto, não podemos ignorar que o conceito de família é hoje completamente diferente. Há mais famílias desestruturadas. O objectivo do legislador é andar atrás da realidade e procurar acompanhar aquilo que a sociedade lhe impõe. Vai-se evoluindo. Há menos de 40 anos era quase impensável que as pessoas sequer se divorciassem. O divórcio tem muito a ver com o fenómeno da emancipação da mulher. Há uns anos atrás não havia divórcios porque a mulher era dependente economicamente, mais submissa, não tinha o seu lugar na sociedade e o divórcio era socialmente reprovável. Havia todo um problema de educação, formação e de organização da sociedade diferente da de hoje.
À medida que a mulher se tornou mais independente e começou a ocupar lugares de destaque na sociedade passou a ser possível pensar que não precisa do marido para sobreviver. Dantes era impensável um homem depender da mulher, ganhar menos do que ela. Hoje alteraram-se todos os estereótipos do casal.
Na nova lei dá-se bastante ênfase à guarda conjunta. Considera que na prática, é cumprida? Não acha que essa modalidade implica que os filhos andem de mochila às costas?

O Tribunal não pode impor a guarda conjunta. Ela tem que ser querida por ambos os pais. Se os pais estão de acordo com o interesse dos menores então não precisam do Tribunal para intervir. Impor a pais que não se relacionam duas direcções na educação, em que a mãe diz uma coisa e o pai outra, não funciona. Uma criança com duas orientações diferentes nunca mais acerta. Nas fases importantes da formação da personalidade, as crianças precisam de uma orientação, por muito que custe. Claro que depois quando as crianças estão a viver com um deles, há a tendência para que seja esse progenitor a estipular as regras e o outro a ficar com o lazer. Mas o juiz deve sensibilizar os pais para que participem conjuntamente na educação dos filhos. Sempre que houver incumprimentos, os pais devem denunciar no Tribunal para que sejam corrigidos os erros. Quando o pai e a mãe não se entendem, o Tribunal nem sempre consegue resolver os problemas. Não consegue anular a vontade que os pais têm em prejudicar-se um ao outro.
Não acho que seja bom para uma criança andar de uma casa para a outra mas é essencial que tenha o máximo de convívio com ambos os pais.
Se os pais puserem o interesse dos filhos acima do deles, tudo corre bem, independentemente do tempo que passam com as crianças. Os pais têm de se entender e perceber qual é a sua função de pais. Não há soluções milagrosas.

O que acha da supervisão de contactos entre pais e filhos, designadas de pontos de encontro, que o Tribunal muitas vezes solicita a determinadas instituições ou à Segurança Social?

Considero-as artificiais porque as crianças ficam condicionadas por estarem na presença de técnicos. Não estão no seu ambiente natural onde têm as interacções que se pretende avaliar.

Agora o poder paternal é designado responsabilidade parental. É apenas um eufemismo ou de facto são conceitos diferentes?

Trata-se de uma terminologia que espelha melhor o que hoje se designa de deveres-poderes. São mais deveres que poderes. Dantes era mais poder que dever.
Considero que hoje, no entanto, os filhos têm a vida mais facilitada. Hoje muitos filhos não sabem o que custa conquistar as coisas. Deveriam saber que as coisas aparecem com esforço e trabalho. O mal da nossa sociedade é a falta de exigência. Depois acontece que os jovens deparam-se com muitas dificuldades no mercado de trabalho precisamente porque não estão habituados a uma cultura de exigência.
Hoje em dia fala-se muito em alienação parental e sabemos que as separações litigiosas implicam muitas vezes a instrumentalização das crianças. Acha que a justiça portuguesa tem lidado de uma forma positiva com este tipo de situações? O que se poderia fazer para melhorar a situação?

A justiça não é toda igual. Depende muito dos juízes. Há muito poucos juízes que conseguem lidar bem com este tipo de situações. O juiz para lidar bem com estas matérias tem que ter uma predisposição e uma grande capacidade de diálogo e firmeza. Tem que conseguir a compreensão e quando envolve crianças tem que conseguir o respeito dos pais. Sempre que um juiz se aperceber que um dos pais está a ser afastado dos filhos pelo outro, deve sem hesitações punir essas atitudes.

O mesmo se passa com os incumprimentos relativamente às responsabilidades parentais…

O juiz tem que ser firme. Tem que mostrar às pessoas que os incumprimentos não o são em relação ao outro cônjuge. É um incumprimento em relação a uma ordem do Tribunal. Em todas as situações de incumprimento o juiz tem que mostrar que se trata de questões muito sérias. Comigo estes crimes de desobediência eram punidos severamente nem que fosse com prisão efectiva. Era intransigente.

Além da pensão de alimentos há outros incumprimentos mais subjectivos como não telefonar aos filhos, não os ir buscar à escola, não telefonar no dia de aniversário….

Sempre que me apercebi que os pais se desinteressavam dos filhos e não cumpriam o seu dever passavam a ter menos poderes. Tem que haver uma correspondência entre os deveres e os poderes. Explicava isto aos pais olhos nos olhos. Não admitia que brincassem com estes assuntos. Os Tribunais gastam rios de dinheiro e os juízes gastam todo o seu investimento e formação para darem uma decisão. Se a decisão não for cumprida, para que serve todo aquele trabalho? Eu dizia muitas vezes que bastava que houvesse uma determinada decisão que não estava a ser cumprida, para mandar fazer averiguações e pressionar os pais incumpridores. O Tribunal só se afirma e só se dignifica se fizer cumprir as suas decisões. Os Tribunais existem para tomar decisões justas para as pessoas.

Na sua opinião, existe uma “cultura jurídica” que beneficia a mãe nos processos de divórcio?

Ainda há resquícios disso. Também não podemos esquecer-nos de um momento para o outro de que a mãe é mãe. Há uma ligação muito grande com os filhos quando são muito pequenos. Mas as questões devem ser tratadas com imparcialidade Em 83 entreguei duas crianças ao pai porque achei que era a solução mais justa. O juiz tem que estar atento e perceber que em certas situações o pai é a pessoa mais indicada para ter a guarda dos filhos. Como já referi, a sociedade está diferente. A mulher tem hoje outro papel na sociedade, devido sobretudo à sua inserção no mercado de trabalho. Há muitos casais em que tem que ser o pai a ir com os filhos ao médico porque a mãe tem mais responsabilidades laborais.

Considera que os aspectos financeiros (dívidas, divisão de bens) são os principais motivos de conflito?

Acabam por ser. Os afectos já foram. Os bens e os filhos são as únicas coisas em que eles podem fazer reivindicações.

O que acha da mediatização que os processos que envolvem crianças têm tido nos últimos tempos?

A mediatização é sempre má. Já fiz duas intervenções, uma no Brasil e outra cá em Portugal acerca da relação dos media com a justiça. Em qualquer processo o melhor que pode acontecer a um juiz é que ninguém se lembre dele.
Há uns anos uma revista quis entrevistar-me acerca de um processo. Estiveram duas horas comigo. Disse-lhes que não podia falar de assuntos do processo. No entanto, expliquei-lhes como funcionavam os tribunais, as leis e como era a decisão dos Tribunais. Não publicaram uma única declaração minha. Não encontraram o juiz que queriam.
E em relação à Mediação Familiar, pensa que será uma aposta para o futuro numa altura em que aumentam todos os dias os casos de divórcio?

Sempre tive um espírito pacificador. Acho que a mediação será essencial no futuro como espaço de diálogo. Os princípios da mediação em que se procuram as soluções a partir da vontade das partes são muito valiosos. Considero, no entanto, que nem na mediação, nem na arbitragem, nem no julgamento, há princípios puros. Acho que os mediadores deveriam poder fazer conciliações de uma forma imparcial e independente, propondo soluções que pareçam ajustadas e correctas. Essas soluções não são sentenças porque senão estaríamos na presença de outra coisa que não a mediação. Na mediação as soluções devem ser relativas à vida prática. O que o mediador deve fazer começar por compreender os motivos do litígio e depois não deve indicar soluções relativas ao litígio em si mas sim soluções da vida prática que podem conduzir à resolução do problema. Porque é que o mediador não poderá sugerir algumas soluções? Depois de perceber o que está na base da discórdia não pode ficar à espera que as partes criem soluções porque podem não ter a criatividade necessária para perceber que existem soluções práticas da vida que podem resolver o problema. Se o mediador sabe que existe uma solução porque não há-de sugerir?
Claro que o mediador tem que perceber com quem está a falar porque há pessoas que gostam que se lhes sugiram soluções e há outras que são mais autónomas. Por isso, o mediador deve ser mais ou menos intervencionista consoante as pessoas que tem diante de si. Se o mediador criar a empatia necessária com as pessoas vai com certeza facilitar o processo de mediação.
Considero que a mediação tem futuro. Aliás, a mediação familiar deveria ser obrigatória. A mediação exige qualidades humanas ao mediador. Os juízes precisam de ter qualidades humanas extraordinárias mas o mediador ainda mais. Ele vai ter que, com subtileza, fazer com que duas pessoas que estão desavindas convirjam. É uma tarefa muito difícil de executar.

Quais as vantagens e desvantagens da Mediação Familiar na resolução de conflitos relativamente aos Tribunais?

É sempre vantajoso quando se conseguem bons resultados. Por outro lado, também demora menos tempo e é mais barato. A mediação tem o consenso como base e isso é sempre uma vantagem. A única desvantagem é ser difícil de se conseguirem os resultados que se desejam.
E qual deve ser o papel dos juízes e advogados neste tipo de processos?

Numa intervenção que fiz sobre menores, disse que os juízes de menores têm de ser diferentes dos outros. Têm que ser dialogantes, ouvir o menor, aproximar-se dele. Se vai falar com uma criança como juiz, a criança não se abre e não confia nele. Nas questões de menores, sobretudo em casos de delinquência, nunca fazia julgamentos com as crianças presentes. Contudo, acho que as crianças devem ser ouvidas. Tinha era que perceber quando ela estavam a ser manipuladas. É preciso criar empatia com as crianças. Por exemplo, um juiz que fale com uma criança não pode estar de beca vestida.
Os juízes devem encaminhar processos para mediação, como aliás resulta do art.º 279 -  A do Código de Processo Civil. Tenho algum receio que certos juízes o façam pelas piores razões, ou seja, para não terem trabalho. Os juízes devem entender que, se ali há possibilidade de entendimento, devem encaminhar para mediação. Claro que há situações em que o juiz percebe que tem que fazer o julgamento e tem que decidir porque é a única solução. As pessoas devem entender que a resolução dos problemas familiares deve ser feita por si. Tudo o que é intervenção do Tribunal é criar um desajustamento, é clivar ainda mais a relação… Em casos de família é importantíssimo que haja a mediação. Tem que se começar a difundir para que daqui a uns anos haja mais confiança na mediação.

Não acha que os advogados poderão não ter o espírito “pacificador” que a Mediação Familiar exige?

Depende dos advogados. Se calhar a maior parte da classe não quer porque ganham menos dinheiro. Há tempos conversava com um amigo acerca da deontologia na classe dos advogados. Há uns anos a lealdade entre advogados e nos processos era levada muito a sério. Hoje é uma selva. As pessoas precisam de ganhar dinheiro.

No seu entender, os juízes e advogados deveriam ter mais formação na área das relações humanas?

O juiz tem que ser uma pessoa muito aberta. Claro que tem que ter uma grande formação humana. A humildade é importantíssima. Um juiz quando não percebe de um determinado assunto pode ter que perguntar a um empregado de balcão ou a um empreiteiro e não ter nenhum problema em fazê-lo.

Como descreve a difusão da Mediação Familiar em Portugal relativamente a outros países da Europa? Não acha que estamos muito atrasados?

Como já referi, acho que a mediação familiar devia ser obrigatória e eventualmente haver penalização nas custas judiciais se não se fizer antes. A mediação laboral e familiar devia ser obrigatória. Mesmo que não resulte o acordo, as pessoas quando vão a Tribunal já vão com outra disposição porque já perceberam e intuíram muitas coisas. Já vão mais abertas a outras soluções. Mesmo que não resultando em acordo é positivo porque vai preparando outro tipo de soluções.
E relativamente aos Julgados de Paz, considera positivo o seu alargamento territorial?

Os julgados de paz são importantíssimos. Praticamente reúnem tudo e são baratos. São uma justiça pronta, mais informal. Para uma série de questões são importantíssimos. No entanto, são ainda pouco disseminados e devia haver mais. As pessoas têm que se habituar a isso. Claro que os julgados de paz têm limitações porque não tratam de todos os processos.